segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Primórdios da habitação social

O background das intervenções no setor habitacional


A questão habitacional constitui uma problemática já antiga da história das cidades. Entretanto, foi com a revolução industrial e o processo de urbanização que essa problemática adquiriu contornos quantitativos nunca dantes delineados. Os baixos salários e a lógica de mercado aplicada à produção imobiliária urbana foram responsáveis pela constituição de um quadro de grande precariedade das condições habitacionais, num contexto de urbanização acelerada. A emergência de políticas públicas nesse setor decorreu de uma convergência de heterogêneas perspectivas que se debruçaram sobre a questão: as constatações e as denúncias da situação; as formulações utópicas propositivas; e as experiências não-governamentais. No que diz respeito às constatações e denúncias, podemos listar um grande número de iniciativas, algumas delas governamentais, outras não. As comissões de inquérito, o jornalismo de denúncia, os relatórios médico-sanitários, as denúncias na produção literária ou mesmo iconográfica constituíram uma referência de base para as proposições de reforma urbana e os programas de habitação social.

No que diz respeito às proposições utópicas, pode-se afirmar que, desde o Renascimento, a questão habitacional esteve freqüentemente contemplada e vinculada às propostas de reforma social presentes nas formulações utópicas. Na Ilha da Utopia de Thomas More (1516), de onde provém o termo utopia, "as moradias não seriam de forma alguma miseráveis".


 


Na verdade, foi só a partir do Renascimento que houve uma efetiva objetivação do espaço urbano. As formulações utópicas anteriores a essa época centravam-se principalmente na organização social e política, sem referências específicas à organização física do meio urbano.
O século XIX assistiu ao aparecimento das primeiras intervenções de reforma da situação habitacional. No âmbito não-governamental, podem-se listar as vilas e cidades operárias, as ações filantrópicas e as experiências das associações de mutuários. Em 1825, por exemplo, um grupo de industriais ingleses criou um conjunto de vilas operárias na região das cidades de Bradford, Halifax e Leeds. Outro exemplo é o da cidade de Berlim, que foi placo de experiências de promoção habitacional em bases cooperativas desde 1847. Muitos dos consórcios cooperativos mutualistas, especialmente os ingleses (as chamadas building societies), tratava-se mais de operações imobiliárias de pequenos investidores do que ações sociais propriamente ditas. Apesar de não centrada especificamente na questão habitacional, merece menção a existência de uma consistente tradição americana no tocante à implantação de comunidades de orientação religiosa, fortemente inspiradas pelas proposições utopistas. Essas experiências foram todas elas muito pouco significativas em termos numéricos. A maior parte da população de baixa renda das cidades industriais do capitalismo nascente abrigava-se em precárias moradias produzidas ou adaptadas pelo pequeno capital rentista.




 Elas assumiram tipologias com grandes variações geográficas como, por exemplo, os slums londrinos, os tenements nova-iorquinos ou as Mietkasernen berlinenses. Como características comuns a todas essas variantes podem-se apontar as altas densidades, a precariedade das instalações sanitárias e uma qualidade de vida degradante, tanto do ponto de vista físico quanto moral. A evolução dos sistemas de transporte possibilitou novas alternativas habitacionais. Nas grandes cidades americanas e inglesas, foram principalmente as classes médias e as mais abastadas que se suburbanizaram, adotando soluções extensivas e de baixa densidade. Em Berlim, o crescimento fez-se, nessa época, seguindo os mesmos padrões urbanísticos então existentes. Os Mietkasernen são blocos de apartamentos, de cinco pavimentos, organizados em torno de exíguas áreas internas aos quarteirões. Os novos bairros resultavam da transformação direta de áreas de uso rural em densos bairros populares. Em Paris, o encarecimento dos valores imobiliários tornara difíceis as alternativas habitacionais para a população de mais baixa renda. Uma parte dela passou a ocupar imóveis subdivididos nos bairros mais antigos. Ocupações ilegais (bidonvilles) ocuparam terrenos vazios, principalmente nas áreas periféricas antigamente ocupadas pelas fortificações. As áreas mais afastadas foram ocupadas por um grande número de loteamentos precários desprovidos de infra-estrutura e de serviços. No caso de Paris nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, são bastante evidentes as similaridades com os cortiços, favelas e loteamentos periféricos atualmente existentes nas grandes cidades brasileiras.

As primeiras ações governamentais

As primeiras intervenções físicas por parte do Estado em relação à questão habitacional caracterizaram-se principalmente pelas ações de erradicação dos cortiços e de outros territórios indesejáveis. De certa forma, pode-se dizer que se tratou de uma antipolítica de habitação social. Nas áreas que foram objeto de intervenções, eram significativos os contingentes de desalojados. Obviamente essas ações eram sempre justificadas como medidas de ordem sanitária, estética ou de melhoria das condições de circulação. Elas aconteceram de forma muito mais intensa nas cidades européias, onde os bairros antigos e deteriorados tinham um peso muito maior do que nas cidades americanas.

À medida que nos aproximamos do final do século XIX, evoluía a idéia da necessidade da produção de moradias para a população carente. Mas o desenvolvimento dos acontecimentos assumiu contextos bastante díspares dependendo do país em questão. Nos Estados Unidos, a idéia pró-promoção da habitação social era contraposta pelo paradigma da não-intervenção, ou para ser mais preciso da intervenção indireta exclusivamente via regulamentação da produção privada. Convém lembrar que, ao mesmo tempo em que existe essa controvérsia em torno do papel do Estado nesse setor, o planejamento e o urbanismo estavam-se definindo enquanto âmbito de atuação. Nesse país, a questão habitacional foi excluída do universo de ação do planejamento urbano. Nenhuma das grandes tendências e paradigmas do planejamento urbano americano incorporou a questão habitacional. Enquanto a reforma urbana européia esteve diretamente ligada às tentativas de resolução da questão da moradia, o planejamento das cidades americanas continuou a se centrar na implantação de áreas verdes públicas, nas ações de embelezamento e finalmente na promoção da eficiência. O conteúdo programático do movimento pró-parques, do City Beaultiful, da Civic Art e do City Efficient não deixam margem a dúvidas a esse respeito. Peter Marcuse foi um dos autores que procurou apresentar as razões dessa exclusão.
No cenário europeu, a existência de um forte movimento operário aliado a uma burocracia estatal de tradição intervencionista fizeram com que o movimento pela reforma social e o planejamento urbano incorporassem a questão habitacional no cerne de suas preocupações. As políticas públicas no setor da habitação tomaram corpo principalmente por volta da virada do século XIX para o XX. Também nesse continente evoluía a idéia da necessidade de produção de moradias, se bem que, num primeiro momento, diretamente ligada às ações de erradicação dos cortiços, num intento de saneamento físico e 'social'. Outro âmbito de intervenção estatal foi o do controle dos aluguéis. A idéia da reforma das condições de habitação da classe trabalhadora não foi uma exclusividade das correntes progressistas. Assim como entidades privadas de orientação filantrópica, algumas administrações de orientação mais conservadora viam nos programas sociais de forma geral, um preço a pagar pela paz e estabilidade social. Mas nem todos eram a favor da reforma urbana. Na França, por exemplo, ainda na década de 1880, qualquer intento de intervenção ou de regulamentação do direito de propriedade era prontamente lido como de orientação socialista, e, portanto temido e condenado. Nesse mesmo país, "em 1883, um médico exprimia o desejo de que cada habitação dispusesse de um banheiro, mas reconhecia que essa proposição era 'radical e absolutamente revolucionária'". A implantação de programas de habitação social deu-se por meio da montagem de quadros técnico-administrativos específicos (secretarias de habitação) no âmbito das gestões locais. Tomava corpo a idéia de que a garantia das condições da habitação pertencia aos deveres e incumbências do Estado. Na França, evoluiu uma legislação (1894, 1906 e 1912) que organizou a produção de habitações sociais pelas administrações locais. Nesse país, entretanto, o comparando com a Inglaterra ou Alemanha, até o final da segunda guerra mundial, a habitação social não constituiu uma prioridade do Estado. Entre 1894 e 1914, apenas 10.000 moradias foram produzidas em toda a região de Paris. Na Grã-Bretanha, os programas tiveram início com uma lei aprovada em 1890, contaram com uma forte influência do movimento fabiano e, num primeiro momento, foram concentrados na região de Londres. Como já mencionado, eles consistiam principalmente de ações de erradicação de cortiços conjugadas à construção de unidades novas no mesmo local, assim como a promoção em áreas periféricas. Em 1909 uma nova lei viabilizou parcerias do poder público com construtores privados. A falta de controle das tarifas de transporte inviabilizou a ocupação das novas unidades pela população mais carente que continuava a ocupar os cortiços em bairros deteriorados. De 1890 a 1914, apenas 18.000 moradias haviam sido concluídas, principalmente na região de Londres. Esse número era inferior ao número de moradias eliminadas com as derrubadas dos cortiços. O resultado foi que, entre 1901 e 1913, a superpopulação das áreas deterioradas só fez aumentar.

Na Europa do norte (aí incluídas a Inglaterra e a Alemanha), foi principalmente depois da primeira guerra mundial que as autoridades públicas se sentiram realmente pressionadas e caminharam em direção a um novo modelo de políticas sociais. Era vergonhoso que ex-combatentes não possuíssem moradia decente. A própria cidade de Londres foi, durante a guerra, cenário de uma importante greve de inquilinos que resultou na imposição de uma legislação de controle dos aluguéis. Finda a guerra, o abrandamento desse controle seria impossível sem alterações significativas na oferta de moradias. Já em 1919, entrou em vigor a Lei de Habitação e do Planejamento Urbano que estabeleceu a incumbência das administrações locais em conhecer a realidade habitacional e executar programas setoriais, não mais restritos apenas à derrubada de cortiços. Essa lei garantiu também a provisão de subsídios para tal. Com refluxos e retomadas, que, por uma questão de economia de espaço não detalharemos, pode-se afirmar que o período que se seguiu foi o da implantação de uma efetiva política de produção de moradias sociais em larga escala. Entre 1919 e 1933/34, em toda a Grã-Bretanha, as autoridades locais foram responsáveis pela produção de 763.000 moradias, estando por essa data cerca de 30% delas concluídas.


Conclusão

O resgate dessas experiências passadas nos faz perceber a perenidade de algumas das questões que ainda hoje norteiam os debates sobre as soluções e alternativas ao problema da habitação popular. Primeiramente, o papel nevrálgico ocupado pela questão fundiária. Todas as experiências relatadas apenas se tornaram possíveis pela efetivação de medidas que asseguraram a disponibilidade de terrenos em que os projetos vieram a se implantar. Em segundo lugar, mas diretamente ligado a essa primeira questão, está o fato de que nas experiências mais profícuas, a questão habitacional foi abordada a partir de uma perspectiva mais ampla, mais intimamente concebida com a questão financeira, e contando com instrumentos de gestão do solo bastante eficazes, notadamente no que diz respeito ao controle da especulação imobiliária. Quais foram esses casos? Viena foi um exemplo bastante “terminado”. No caso dessa cidade, o Ato de Controle dos Aluguéis (1922) foi um instrumento muito mais completo e abrangente do que o descrito ao longo deste texto. Essa lei praticamente expropriou os proprietários dos imóveis de locação de seu direito de propriedade, sem, entretanto, aboli-lo. A Holanda é outro caso “radical”. Apenas para relembrar: os proprietários constituíam consórcios de desapropriação, o Estado desapropriava a terra, urbanizava-a e revendia-a para o mesmo consórcio. Há, no caso holandês, a eliminação do capital fundiário (aquele que ganha com venda de terrenos). Só restou o imobiliário. A tal ponto que se pode falar de um “capitalismo holandês”, naquela época, onde a proporção de capital ligado diretamente ao setor produtivo (não-especulativo) era maior do que em outros países.
Dentro do nosso período de interesse, em todos os casos aqui abordados, exceto o americano, os programas que chegaram à produção em massa de moradias concentraram-se no período do entreguerras. Em todos eles, são as administrações locais que implementaram os programas. Mas existia sempre uma lei maior, de âmbito nacional, bastante favorável à existência dos programas. Em todos os casos, só ocorreram programas municipais quando assumiram o poder administrações engajadas em alterar o quadro existente. O resultado obtido no âmbito dos programas de habitação social no período por nós abordado nos permite afirmar que essas experiências constituíram antecipações do Estado do bem-estar social que caracterizou o mundo desenvolvido a partir do segundo pós-guerra. Nesse sentido, pelo menos em relação á maioria dos países aqui abordados, as realizações do segundo pós-guerra significam muito mais uma continuidade do que o início de uma nova forma de atuação do Estado.



FONTE:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.097/136

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