segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Habitação social e pré-fabricação

A problemática habitacional é uma ferida antiga, evidenciada no auge da revolução industrial pelas condições subumanas de vida do proletariado emergente. Assim, não há surpresa na constatação de que, desde seu prelúdio, o Modernismo tenha abordado o tema de maneira programática como bandeira dos movimentos de vanguarda. A partir desse momento a discussão foi ativada nos mais diferentes contextos e, sob perspectiva política, a evolução dos fatos tem sido paralela, seja nas sociedades ditas democráticas, seja nos regimes autoritários ou populistas como o nazismo alemão ou o Estalinismo. No Brasil, o período Vargas possibilitou "grandes" realizações do Modernismo nesse campo, e mesmo o Regime pós-64 não ignorou o potencial propagandista dos programas habitacionais.

O "desafio do século 20" permanece o desafio do próximo milênio. Não apenas o novo, mas o futuro do já construído, em particular das realizações do pós-guerra, fazem parte do atual escopo de trabalho. As gigantescas realizações do passado foram apenas um gesto inicial frente a uma problemática global que agrava-se a cada dia. Essa massa construída sofre decadência inevitável, e precisa ser tratada com a mesma ambição com que foi criada. A Alemanha unificada, por sua privilegiada situação econômica, é o primeiro país a efetivar extensos programas de revitalização destes complexos habitacionais. As experiências já colecionadas oferecem embasamento crítico para programas similares que se iniciam na Europa Oriental, ainda que o atual panorama político-econômico da maioria destes países mal possibilite projetos de semelhante natureza.

A herança socialista em perspectiva

Com a unificação alemã iniciou-se a partir de 1990/91 a revisão das estruturas administrativas do patrimônio habitacional do Leste, tendo como base as experiências ocidentais. A condicionante básica para a rápida reformulação foi a estrutura de propriedade dominante na antiga RDA, onde mais de 90% das unidades permaneciam sob gerência estatal. Foram constituídas autarquias, chamadas Wohnungsbaugesellschaften, responsáveis pela administração, manutenção e desenvolvimento de conjuntos habitacionais existentes, operando com meios próprios provenientes da locação e venda de imóveis, com subsídios governamentais e da Comunidade Européia e financiamentos externos. Paralelamente, o Estado iniciou o processo de privatização gradual do patrimônio, liberando 15% das unidades para venda até 1999. Habitações podem ser adquiridas individualmente por moradores, ou edifícios e quarteirões inteiros por investidores privados ou fonds que comprometem-se a agir dentro de parâmetros controlados por lei: respeito ao piso dos aluguéis, obrigatoriedade de investimentos a prazo determinado, etc. Para tanto, o investidor conta com significativos incentivos fiscais que reduzem o risco da operação.

Sendo habitação ao mesmo tempo uma questão social e de mercado, a situação de concorrência entre as autarquias e mais recentemente entre estas e investidores na luta pela manutenção e ganho de inquilinos têm-se mostrado saudável. Estima-se que entre 1991 e 1998 quase 50% das unidades habitacionais da antiga RDA tenham recebido melhorias. Os distritos-dormitório têm assim a chance de transformar-se em parte integral do contexto urbano.

Estratégias de reformulação e desenvolvimento

O controle do Estado sobre as autarquias dá-se através de diretrizes nacionais e supervisão estadual ou municipal. Cada autarquia opera com estratégia e estrutura operacional próprias, formuladas de acordo com suas condições específicas: estrutura social dos habitantes, localização urbana, características urbanísticas e tecno-construtivas, estado de preservação dos edifícios, situação de mercado. Podem ser constatadas quatro tendências básicas na reformulação e desenvolvimento da massa construída existente:
1. Diferenciação e adensamento em áreas predominantemente urbanas: edifícios localizados em contexto urbano misto e fragmentado, cuja renovação pretende "corrigir" os erros urbanísticos do pós-guerra. Cada edifício é tratado exteriormente com linguagem diferenciada, espaços "vazios" entre edifícios são parcialmente ocupados por edifícios complementares contendo infra-estrutura, serviços e novas habitações, paisagismo e mobiliário urbano são reformulados no sentido de acentuar o caráter citadino de vizinhança.
2. Tombamento e renovação: edifícios ou conjuntos com caráter específico de certos períodos da era socialista nas diferentes cidades vêm sendo tombados e renovados. Entre eles, conjuntos em "estilo estalinista" dos anos 50, edifícios-protótipo de sistemas construtivos, grupos de edifícios marcantes do pensamento urbanístico da época, ou edifícios com caráter de referencial urbano relevante.
3. Melhorias do meio-ambiente nos grandes conjuntos habitacionais: a infra-estrutura existente na maioria dos grandes conjuntos ou distritos-dormitório consistia até 1991 em razoável saneamento básico e transporte coletivo e numa bem proporcionada quantidade de equipamentos como escolas, hospitais e creches, sendo porém quase inexistentes a infra-estrutura comercial, as áreas verdes e de laser. Algumas das autarquias tomaram como prioridade a melhoria da qualidade de vida do conjunto como um todo (exemplo: Berlin-Hellersdorf, com 100.000 habitantes), investindo igualmente em todos os quarteirões durante os primeiros anos. Planos diretores definem a localização de nova infra-estrutura e de novos edifícios habitacionais, centros e sub-centros comerciais e de serviços, parques, bolsões de estacionamento, etc. Iniciou-se o plantio ordenado de árvores, a reformulação de praças, parques infantis e centros de convivência, nova iluminação pública e o tratamento das entradas dos edifícios, tidos como elemento essencial para a quebra da anonimidade dos blocos de habitação. Após essa etapa, com duração aproximada de 5 anos, iniciou-se a reforma completa de blocos ou quarteirões, cada um deles replanejado com identidade própria no sentido de diferenciação da paisagem e identificação do morador com seu quarteirão.
4. Modernização setorizada de edifícios: estratégia adotada em áreas onde a processo de decadência é mais premente. Siedlungen como Berlin-Marzahn, com quase 150.000 habitantes, foram divididos em setores de intervenção prioritária, nos quais o volume de investimentos se concentra em cada etapa. Esta estratégia vem sendo corrigida, dado o protesto de moradores que precisam esperar anos por benefícios efetivos em sua habitação ou quarteirão.
A fim de manter estável a estrutura social mista dos conjuntos habitacionais, a maioria das medidas é executada sem que acarretem um aumento substancial no preço dos aluguéis, regulamentados por lei e fixados por metro quadrado de acordo com localização do imóvel e qualidade da moradia. Os serviços de melhoria são em geral divididos entre "medidas básicas" financiadas pela companhia administradora e "medidas opcionais" realizadas por esta e pagas pelo morador diretamente ou através de aumento extraordinário do preço do metro quadrado alugado.

Conclusão

A situação hoje verificada nos complexos habitacionais da Europa Central e Oriental significa para especialistas e a sociedade como um todo com um desafio de ordem até há pouco ignorada. O confronto com os disparates urbanísticos e arquitetônicos dos anos 50 e 60 já havia se iniciado há 30 anos no Ocidente, através dos comentários críticos de Jane Jacobs , Herbert Gans, Oscar Newman ou Robert Venturi, e tomaram plasticidade panfletária com a declaração da "Morte da arquitetura moderna" lançada por Charles Jencks em 1977, onde esse autor toma como enlace o episódio da demolição do conjunto habitacional Pruitt-Igoe em St. Louis/Missouri em 15 de julho de 1972. Além da crítica funcional ao planejamento do período, esses autores argumentavam que a linguagem "purista" da Arquitetura Moderna estaria em irremediável contradição aos códigos de vida de seus usuários. Fato é que boa parte das tendências originadas desta crítica, comumente posicionadas sob o rótulo "Pós-Modernismo", demonstraram-se ineficazes na resolução do problema. Sua importância revela-se hoje na reintrodução da discussão da cidade enquanto fenômeno orgânico, pluralista, capaz de permanente reação aos sinais dos tempos.

O fenômeno da decadência dos grandes conjuntos habitacionais deve-se também a fatores exteriores a questões diretamente relativas à Arquitetura, e que nem sempre encontram nesta um campo de reflexão. Política urbana, política habitacional ou questões administrativo-financeiras são igualmente determinantes do sucesso de qualquer empreitada. Somente a permanente vigilância nesses campos pode alterar o curso dos processos de decadência construtiva dos complexos habitacionais e da formação de guetos cuja dissolução é quase impossível.

A falência do "socialismo real", lida por muitos como o "triunfo da civilização ocidental", trouxe consigo uma série de impasses mantidos sob controle no antigo sistema, sendo o mais óbvio deles a possibilidade de ascensão social e a pressão por esta causada. Esse novo horizonte vem a gerar em curtíssimo prazo conflitos sociais que se expressam na eminente "invasão" da Europa Ocidental por essas populações em busca de trabalho e novas condições de vida.

Assim, não é difícil entender o empenho da Comunidade Européia na formulação de programas de auxílio técnico e financeiro aos países da Europa Oriental. Parcerias entre cidades vêm sendo efetivadas, institutos têm sido fundados nos diversos países, e o Senado de Berlim criou um departamento próprio para intercâmbio de experiências. A European Academy of the Urban Environment formulou em outubro de1997 a "Sofia declaration on the future of the large prefabricated housing estates in central and eastern Europe", na qual explicita a urgência de intervenções.

Se por um lado os extensos programas da era socialista ocasionaram uma radical transformação da paisagem urbana nesses países, que inclui a perda irreparável de um patrimônio urbano, por outro não se pode negar que a estas populações foram proporcionadas condições mínimas de vida das quais o terceiro mundo carece. Além disso, observa-se que ao longo das décadas surgiram hábitos culturais próprios desta nova forma de vida, que não podem ser ignorados. A massa construída apresenta sem dúvida problemas, alguns dos quais mencionados nesse artigo, mas possui também qualidades intrínsecas a serem salientadas. O custo social de soluções radicais como a demolição em St. Louis é absurdamente inviável, e vale aqui notar que os custos de recuperação e desenvolvimento desses complexos não ultrapassa um terço do valor de construção nova equivalente.

A pré-fabricação enquanto princípio, formulada de forma quase utópica pelo Modernismo, continua sendo o grande instrumento no equacionamento da problemática habitacional. O futuro das realizações socialistas na Europa Central e Oriental pode parecer à primeira vista um tema localizado e distante para nós brasileiros. No entanto, a proporção das realizações e a variedade de enfoques adotados no passado e na atualidade instigam investigações mais profundas sobre estas experiências, que podem servir de insumo na formulação de novas políticas habitacionais no Brasil e na América Latina.


FONTE:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.014/866

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